terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A vida na vaga

Valorização imobiliária, adensamento comercial e alto potencial construtivo sem o investimento compatível em transporte público de massa resultará em situações que já são encontradas logo ali em São Paulo. Esse texto do MOACYR SCLIAR é para rir...mas ele é uma premonição do que pode ocorrer na Zona Portuária do Rio de Janeiro. Quem me repassou esse texto foi a Arq. Izabella Lentino.

A vida na vaga

Atualmente sai do escritório, come alguma coisa e vai direto para o carro, esperar a hora de retornar ao trabalho

Falta de vaga para o carro faz motorista "madrugar" na Berrini. Trabalhadores da região chegam até duas horas e meia antes do horário de entrada para encontrar lugar para estacionar na rua. Além de escassas, vagas de estacionamento são caras (até R$ 350); a região não tem metrô e conta com poucas linhas de ônibus. Às 7h já não há mais onde parar no meio-fio das ruas entre a Berrini e a marginal Pinheiros. Às 9h30, muitos estacionamentos, que não são nada baratos, estão lotados. Às 10h30, só sobram vagas a mais de quatro quarteirões da avenida e do lado oposto ao da marginal, onde, segundo frequentadores, é comum o furto de veículos. "É fácil ver gente dormindo aqui", afirma o produtor Mário Marcos. Cotidiano, 2 de março de 2009
NO COMEÇO ele tinha de chegar de carro à Berrini duas horas e meia antes do horário de expediente para conseguir estacionar. Era um problema, sobretudo para quem, como ele, não gostava de acordar cedo; mas, lutador que era, não deixava se intimidar por aquilo. Chegava cedo, sim, e tratava de usar o tempo da melhor maneira possível: escutava rádio, lia jornal, e até escrevia -ficcionista frustrado tinha o projeto de um grande romance e, aos poucos, ia digitando no laptop uma e outra cena.
Mas -e isso apesar da crise- a situação se agravou. Em breve, duas horas e meia de antecedência não eram suficientes. Ele aumentou-as para quatro horas. Agora dormia menos ainda, mas, em compensação, ficava cada vez mais atualizado com as notícias de rádio e de jornal. E, ah sim, o romance ia crescendo.
A primeira parte já estava quase pronta, e ele começava a projetar as outras. Tinha de lutar contra o invencível sono, claro, mas a térmica com café (e ele esvaziava-a toda) ajudava um pouco.
Contudo, mais e mais carros entravam na luta por uma vaga. Ele começou a chegar seis horas antes do expediente. Era ainda noite fechada quando estacionava, mas, de novo, isso não o perturbava; ao contrário, até gostava do silêncio que então reinava naquela artéria em outros horários tão movimentada. Isso também mudou a sua rotina familiar, claro; depois de jantar com a mulher e os dois filhos não ia para a cama: cochilava umas horas na poltrona e seguia para o carro.
Passava mais tempo no veículo, mas isso só fazia aumentar seu universo cultural: além de rádio e jornais, lia revistas, livros diversos (estava pensando em fazer um mestrado) e, logicamente, trabalhava no seu romance, cada vez maior.
E o problema do estacionamento sempre crescendo. Chegou um momento em que ele chegava em casa, jantava apressado, e, embarcando no carro, retornava para a Berrini. Por fim chegou à conclusão de que não valia mais a pena a volta ao lar.
Atualmente sai do escritório, come alguma coisa numa lanchonete, e vai direto para o carro, esperar a hora de retornar ao trabalho. A mulher e os filhos é que vêm visitá-lo no veículo, que se transformou assim numa espécie de lar.
Não, ele não se queixa. Vê algumas vantagens na nova situação. Não precisa dirigir mais, não se estressa no trânsito, não gasta combustível.
É um homem cada vez mais culto, uma verdadeira enciclopédia ambulante (quando deambula, claro). E seu romance, que já está com mais de mil laudas, tem tudo para ser uma grande obra literária. O título, ainda provisório (muitas coisas em deambular nossa existência são provisórias). é "A vida na vaga".

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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