quinta-feira, 22 de abril de 2010

Um amor de carro - TONY JUDT

Neste dia de quase feriado, um texto do historiador Ton Judt sobre a relação da geração dos pais dele e dele própria com o automóvel.  Vale a reflexão de como nos comportamos em relação a este veículo e o que devemos passar para as próximas gerações!!



http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2803201019.htm
São Paulo, domingo, 28 de março de 2010

A partir da paixão de seu pai por veículos Citroën, na Inglaterra do pós-guerra, Tony Judt conta a história dos conflitos culturais no século 20

Para os homens nascidos no entreguerras, o automóvel simbolizava liberdade e prosperidade

Era no carro que meu pai se sentia mais em casa e minha mãe, menos.

Segundo minha mãe, meu pai era "obcecado" por automóveis.

Na visão dela, a eterna fragilidade de nossa economia doméstica se devia à tendência de seu marido de gastar com eles todo nosso dinheiro que pudesse sobrar.

Não posso avaliar se ela tinha razão em relação a isso -é bastante evidente que, deixada por conta própria, teria limitado a família a um veículo pequeno por década, quando muito.

Mas, mesmo aos olhos solidários de seu filho admirador, meu pai de fato parecia viver bastante absorto em seus carros -e especialmente os da Citroën, a montadora francesa cujos produtos idiossincráticos enfeitaram o pátio de frente de nossa casa durante toda minha infância e adolescência.

Havia a ocasional aquisição inglesa feita por impulso e que não tardava a ser lamentada -um Austin A40 conversível, um AC Ace esportivo-, além de um caso que durou um pouco mais com um DB Panhard, sobre o qual falarei mais adiante; mas, entrava ano, saía ano, Joe Judt dirigia, falava sobre e consertava Citroëns.

O fato de meu pai ter sido tão obcecado pelo motor de combustão interna era inteiramente condizente com sua geração. A chamada "cultura do carro" chegou à Europa ocidental na década de 1950, que foi mais ou menos o momento no qual meu pai se viu em condições de ingressar nela.

Os homens nascidos antes da Primeira Guerra Mundial já estavam adiantados na meia-idade antes de os automóveis ficarem ao alcance da maioria dos europeus.

Nos anos 1930 e 1940, os automóveis eram limitados a carrinhos notórios por seu desconforto e pelas panes, e a maioria dos europeus não teve condições financeiras de adquirir algo melhor até passado o auge de sua maturidade.

Já minha geração cresceu na companhia de carros e não enxergava neles nada de especialmente sedutor ou romântico.

Gasolina barata

Mas, para os homens nascidos no entreguerras, o automóvel simbolizava liberdade e prosperidade recém-conquistadas. Eles tinham condições de possuir um veículo, e havia muitos disponíveis.

A gasolina era barata, e as estradas ainda eram agradavelmente vazias. Nunca entendi inteiramente por que tínhamos que andar em um Citroën. A posição ideológica de meu pai em relação a isso era que os Citroëns eram os mais tecnologicamente adiantados que havia.

Eles eram inquestionavelmente mais confortáveis que a maioria dos sedãs familiares comparáveis e, provavelmente, mais seguros também.

Se eram mais confiáveis, já é outra questão: nos tempos anteriores à revolução automotiva japonesa, carro nenhum era especialmente confiável na estrada, e passei muitas noites maçantes entregando ferramentas a meu pai enquanto ele mexia em algum motor disfuncional, até tarde da noite.

Olhando em retrospectiva, me pergunto se a insistência de meu pai em comprar Citroëns não teria tido alguma relação com sua vida pregressa.

Afinal, ele era imigrante: nascido na Bélgica, criado ali e na Irlanda e tendo chegado à Inglaterra apenas em 1935. Com o tempo, aprendeu a falar um inglês impecável, mas, sob a superfície, permaneceu um europeu continental: seu gosto por saladas, queijos, café e vinhos frequentemente destoava da falta de preocupação de minha mãe, bem inglesa, com a comida ou a bebida.

Quanto à razão de nos termos tornado uma família "Citroën", quando os veículos Volkswagen, Peugeot, Renault, Fiat e todo o resto eram facilmente disponíveis e custavam menos, gosto de pensar que havia alguma motivação étnica subliminar em ação.

Aristocratas x pobres

Carros alemães estavam fora de questão, é claro. A reputação dos veículos italianos estava em seu ponto mais baixo: a impressão amplamente difundida era a de que os italianos eram capazes de projetar qualquer coisa -apenas não eram capazes de construí-la.

A Renault tinha sido maculada pela colaboração ativa de seu fundador com os nazistas. A Peugeot era uma empresa respeitável, mas mais conhecida por suas bicicletas; de qualquer maneira, seus carros eram construídos como tanques e pareciam ser carentes de verve (o mesmo argumento era apresentado contra os Volvos).

E, consideração que talvez fosse a decisiva, embora não declarada: o fundador epônimo da Citroën tinha sido um judeu.

Havia algo de levemente embaraçoso em nossos automóveis. Em uma era de austeridade e provincianismo, pareciam atribuir à nossa família uma qualidade agressivamente exótica e "estrangeira", o que levava minha mãe, em especial, a sentir-se pouco à vontade.

E, é claro, eram (relativamente) caros, e, portanto, ostentosos. Recordo-me de uma ocasião em meados dos anos 1950 quando atravessamos Londres de carro para visitar meus avós maternos, que viviam numa casa geminada decadente em uma rua lateral em Bow.

Naquela época ainda havia poucos automóveis naquela parte de Londres, e os que havia geralmente eram pequenos Ford Populars ou Morris Minors pretos, testemunhos dos recursos limitados e gostos convencionais de seus donos.

E lá estávamos nós, saindo de um Citroën DS 19 branco e reluzente, como aristocratas vindos para inspecionar seus inquilinos pobres. Durante alguns anos, por volta de 1960, a obsessão de meu pai pelos automóveis o levou a participar do esporte automotivo amador. Todos os domingos, nós dois viajávamos até Norfolk ou East Midlands, onde outros entusiastas por carros preparavam programas organizados de corridas.

Amigos diversos da família eram atraídos (em troca de remuneração? Eu nunca soube) para fazer as vezes de "mecânicos", enquanto me era confiado o encargo curiosamente responsável de cuidar da pressão dos pneus antes das corridas.

Isso era divertido a seu modo, embora o ambiente pudesse ficar maçante (homens adultos discutindo carburadores por horas a fio) e as viagens de ida e volta levassem até seis horas.

Muito mais divertidas eram as férias continentais (ou seja, na Europa) que tirávamos naqueles anos.

Naqueles tempos anteriores às grandes rodovias, uma viagem rodoviária europeia era uma aventura: tudo levava muito tempo, e sempre havia alguma coisa que quebrava.

Sentado no banco da frente, do lado "errado", eu tinha uma visão do lado do motorista das gloriosas "routes nationales" francesas.

Eu também era o primeiro a ser abordado por policiais sempre que éramos parados por excesso de velocidade ou, em uma ocasião memorável no meio da noite em algum lugar nos arredores de Paris, quando fomos parados em uma blitz militar.

Nossas viagens geralmente eram feitas em família. Minha mãe não dava a mínima se suas férias eram passadas em Brighton ou Biarritz; achava as longas viagens de carro cansativas e tediosas.

Mas, naquela época, as famílias faziam coisas em família, e parte do objetivo de ter um carro era sair em "passeios".

Para mim, pelo menos (e, nesse ponto, provavelmente me assemelhava a meu pai), o objetivo do exercício era a própria viagem -os lugares aos quais íamos, especialmente nos nossos passeios dominicais, com frequência eram convencionais e tinham pouco de interessante que justificasse serem conhecidos.

Mesmo do outro lado do canal da Mancha, a melhor parte de nossas férias de verão e de inverno sempre era a aventura envolvida em chegar até lá: os pneus furados, as estradas congeladas, o perigo das ultrapassagens em estradinhas rurais estreitas e cheias de curvas, os hoteizinhos exóticos aos quais chegávamos tarde da noite, após longas horas de desentendimentos domésticos amargos sobre quando e onde pararmos.

Era no carro que meu pai se sentia mais em casa e minha mãe, menos. Considerando a quantidade de tempo que passamos na estrada naqueles anos, é surpreendente que o casamento deles tenha durado tanto quanto durou.

Carro como lar

Olhando para trás, eu talvez veja a autoindulgência de meu pai com mais tolerância do que via na época, apesar do prazer que sentia em nossas viagens familiares.

Hoje vejo meu pai como um homem frustrado: preso na armadilha de um casamento infeliz e trabalhando em algo que o entediava e, possivelmente, até o humilhava. Os carros eram sua comunidade.

Sem muito interesse por pubs ou álcool e sem amigos no trabalho, converteu o Citroën em um companheiro para todas as finalidades.

O que outros homens procuravam e encontravam no álcool e nas amantes, meu pai sublimava em seu caso de amor por uma montadora de carros -o que, sem dúvida, explica a instintiva hostilidade de minha mãe em relação a isso.

Quando completei 17 anos, aprendi a dirigir e, no tempo devido, adquiri o primeiro de muitos carros -como não poderia deixar de ser, um Citroën, mas um 2CV baratinho.

Mas, embora tenha sentido prazer na experiência e, mais tarde, tivesse transportado diversas namoradas e mulheres por boa parte da Europa e dos EUA de carro, dirigir um veículo nunca significou para mim o que significou para meu pai.

Como enxergava pouco encanto em oficinas mecânicas frias e fosse destituído das habilidades técnicas necessárias, não demorei a abandonar os Citroëns por marcas mais confiáveis, embora menos exóticas: Honda, Peugeot e, eventualmente, um Saab. É verdade que também dei vazão a alguns caprichos movidos a testosterona: um conversível MG vermelho comemorou meu primeiro divórcio, e guardo memórias agradáveis de um Ford Mustang aberto descendo pela Route 1 costeira da Califórnia. Mas eles sempre foram apenas automóveis, não uma "cultura".

"Baby boomers"

Também essa me parece ser uma reação própria de uma geração. Nós, "baby boomers", crescemos com carros e com pais que os adoravam.

As estradas nas quais nos formamos eram mais abarrotadas, menos "abertas" que as do entreguerras e das décadas imediatamente posteriores à guerra. Havia pouco de aventuroso em dirigir nelas e não muito a ser descoberto.

As cidades nas quais vivíamos já estavam se tornando hostis aos próprios automóveis: em Nova York e Paris, assim como em Londres e em muitas outras cidades, faz pouco sentido ter um veículo particular em casa.

No auge de sua hegemonia, o carro representava individualismo, liberdade, privacidade, separação e egoísmo em suas formas mais socialmente disfuncionais.

Mas, como é o caso de tantas disfunções, essa era insidiosamente sedutora. Como Ozymandias [o faraó Ramsés 2º, cujas grandeza e dacadência são tema de soneto de Shelley], o automóvel agora nos convida a refletir sobre sua obra e seu desespero. Mas foi bastante divertido em sua época.

TONY JUDT é historiador britânico e professor na Universidade de Nova York (EUA).

Tradução de Clara Allain .

Um comentário:

  1. Ótimo post! E é uma pena que Tony Judt tenha morrido, ontem, tão cedo, com apenas 62 anos. Sabemos que sua vida e obra jamais serão esquecidas e o quanto é importante que não o sejam, mas infelizmente suas notáveis contribuições à humanidade cessam a partir de agora.

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